TORTURA NO BRASIL, UMA HERANÇA MALDITA
Maria Victoria de Mesquita Benevides Soares
A tortura é comum em nosso país desde sempre. Essa prática nefanda, verdadeira herança maldita, trazida pelos portugueses “educados” nos métodos da dita sagrada Inquisição, permanece até hoje, passando por Colônia, Império, Independência, República, ditaduras e imperfeitos Estados de Direito, com governos de todos os tipos. Os indígenas, os hereges ou infiéis, os negros escravos e descendentes, os “vadios”, os marginais de toda sorte, os internos nos manicômios, os “subversivos” e opositores políticos, os presos ditos “comuns”, os pobres em geral, os não cidadãos... todos potencialmente vítimas dos abusos e da violência extremada. Para punir, disciplinar e purificar (sic), arrancar confissões e informa- ções, intimidar, “dar o exemplo”, vingar, derrotar física e moralmente o suposto inimigo ou, simplesmente, o indesejável. A discussão sobre a tortura, onde quer que se dê, envolve aspectos históricos, filosóficos, morais, jurídicos, políticos, psicológicos e sociais. No Brasil, trata-se de questão crucial e mobilizadora na área dos Direitos Humanos, embora ainda negligenciada – ou manipulada em nome de interesses escusos no debate público. Se o tema provoca aversão e indignação militante e propositiva por um lado, por outro também desvela um certo silêncio, mesclado de medo ou desconforto, quando não explícita tolerância, além da omissão criminosa de certas autoridades
A tradicional imagem do brasileiro como “um homem cordial” – pois a doçura de sentimentos, a afabilidade no trato e a generosidade com os visitantes encantavam os estrangeiros, segundo textos da história ufanista – vem sendo tão desmentida quanto a velha tese sobre nossa “democracia racial”. Hoje, ninguém mais, com um mínimo de informação e olhos para ver, poderá duvidar de que podemos ser violentos, preconceituosos e racistas. Até que ponto a sociedade
1 Em 1987, a Comissão Justiça e Paz de São Paulo solicitou ao cineasta Renato Tapajós a realização de um vídeo sobre a tortura. Intitulado Humilhação e Dor – foi muito utilizado nos cursos e campanhas de várias entidades e movimentos – sobre o histórico e a realidade da tortura no País. continuará aceitando a ilusão de sermos um país “abençoado por Deus e bonito
por natureza”, com filhos amorosos e devotos da “pátria mãe gentil”? Em pesquisa realizada em 2009 pela agência Nova S/B, em parceria com o Ibope, 26% dos entrevistados declararam-se favoráveis à tortura de suspeitos, realizada por agentes policiais. Os quase quatro séculos de escravidão deixaram sua marca vil: nos entrevistados com renda mensal superior a cinco salários
mínimos, o índice de aprovação da tortura policial chegou a 42%, ao passo que a média de aprovação, entre os que vivem com menos de cinco salários mínimos de renda por mês, não ultrapassou 19% (Comparato, 2010a, p. 109). Outra pesquisa, coordenada por Gustavo Venturi, revelou que um quinto da população brasileira conhece pessoalmente alguém que tenha sido torturado, mas apenas 12% consideram a tortura uma prática que deve ser combatida (Arantes e Pontual, 2010, p. 49). Em recente publicação (Relatório sobre Tortura: uma Experiência de Monitoramento dos Locais de Detenção para Prevenção da Tortura, 2010) a Pastoral Carcerária denunciou casos de tortura, por ela pesquisados, em 20 estados brasileiros, sendo o maior número de casos em São Paulo (71), no Maranhão (30), em Goiás (25) e no Rio Grande do Norte (12), salientando que a maioria dos torturadores não sofreu punições. As denúncias de tortura são feitas por presos, parentes e até mesmo pelos próprios agentes penitenciários. “Muitas vezes, os agentes têm medo, porque, quando denunciam, são vítimas de retaliações”, afirmou José de Jesus Filho. Há tortura no interior de delegacias ou carceragens, praticada por integrantes da Polícia Civil. Geralmente, os casos que envolvem policiais militares ocorrem na rua, em residências ou estabelecimentos privados, para obter informação e castigar. “Os crimes em estabelecimentos penitenciários são menos acessíveis, geralmente ocorrem depois de conflitos com agentes penitenciários”, diz o texto. Tais dados, que ecoam a maldita “tradição” e se repetem miseravelmente em todo o País, não nos impede de registrar os avanços contemporâneos na luta pela defesa e promoção dos Direitos Humanos – na sociedade e no âmbito do Estado – inclusive com a condenação na Constituição vigente e a posterior definição do crime de tortura. Temos hoje, sem dúvida, a oportunidade de levar o debate em várias instâncias, com a legitimidade de um tema que entrou, apesar de muita oposição, na agenda do Estado.
Este texto não pretende reunir propostas ou soluções; outros textos neste livro o farão. Seu objetivo é contribuir para situar a prática da tortura no Brasil em perspectiva histórica (mesmo que brevíssima) bem como no contexto da defesa e da luta pelos Direitos Humanos. É evidente que o tema requer aprofundamento, o que foge aos limites aqui propostos.
TORTURA, EFEITOS PSICOLÓGICOS E TRANSMISSÃO
TRANSGERACIONAL DOS DANOS
Até aqui temos dito que os efeitos da violência institucionalizada não se fizeram sentir apenas sobre os diretamente atingidos. No entanto, quando nos deparamos, na clínica, com os sintomas psíquicos e corporais que acometeram os afetados pela tortura e/ou pelas mortes e desaparecimentos políticos de seus familiares, encontramos uma especificidade nos danos que os atingiram, não Para uma discussão mais aprofundada a este respeito). somente porque com eles foram utilizadas as formas mais propriamente coercitivas e violentas do poder, e justamente pela instância que deveria garantir-lhes a proteção, mas também porque diante do silenciamento, da negação e da impunidade que se seguiram a tais crimes, eles foram convertidos nos únicos depositários dos danos provocados por tais acontecimentos. Por outro lado, como já mencionamos acima, mesmo os acontecimentos traumáticos mais desmesurados não necessariamente levarão ao adoecimento psíquico. Nos casos de violência política praticada por agente do Estado, o destino do trauma depende tanto dos recursos pessoais e da sustentação da
rede de quem o viveu, como também da forma com que o Estado e a sociedade respondem ao acontecido. Se o dano é reconhecido e são instaurados processos de responsabilização e reparação, é possível sua inscrição social e elaboração. Se o Estado e a sociedade silenciam e a tortura é legitimada; se a percepção da violência e do dano é desmentida, esta continua sem inscrição social e passa a ser vivida como algo próprio. Torna-se encapsulada como um corpo estranho, cristaliza-se e fica imune à passagem do tempo, sendo transmitida em estado bruto para as gerações seguintes. Se nos afetados pela tortura e outras violações é exatamente a capacidade de simbolizar o acontecimento traumático que fica comprometida, diante do silêncio e até da recusa do corpo social em ouvir, o próprio silenciamento é erigido em mecanismo de defesa. Para evitar o contato com a experiência da dor e do desamparo, as marcas psíquicas da violência são encapsuladas e disso- Como nos dizem Kordon e Edelman “Es particularmente siniestro el efecto que produce en una persona el presenciar el secuestro de un hijo, un amigo, un vecino, y encontrar en el afuera una desmentida permanente, un no-reconocimiento, una negación de la propia percepción” (KORDON E EDELMAN, 2007: 72). Segundo Halbachs, “solo podemos recordar cuando es posible recuperar la posición de los acontecimentos pasados en los marcos de la memoria coletiva”. Y lo que no encuentra lugar o sentido en ese cuadro es material para el olvido (JELIN, 2002, p. 20-21).” associadas, e, no lugar da vivência traumática, o que subsiste são bolhas de tempo, zonas de silêncio, fragmentos de vida que não podem ser integrados aos demais. Dissociada, a vivência traumática é capturada num limbo atemporal e fica impedida de adquirir um estatuto de lembrança. Represados os afetos, impedida a mobilidade psíquica e congelada a capacidade expressiva, o ocorrido não pode mais ser reconhecido como causa de sofrimento, nem tampouco ser objeto de esquecimento. Como presença ausente, ou ausência presente, o traumático pode, no entanto, irromper a qualquer momento, invadindo a cena, reativando o terror. Mas pode também manter-se enquistado e ser transmitido para as gerações posteriores.O que ocorre, então, quando essas marcas são transmitidas para as gerações subsequentes? O que acontece quando se herda a pura marca afetiva do terror e não se é capaz de historicizar o dano? O que fazer quando da memória do trauma persistem apenas intensos restos perceptivos, cheiros ou sons, capazes de gerar violentos estados de ansiedade e/ou dolorosas sensações corporais, mas insuficientes para o trabalho de simbolização, como no relato de um jovem sobre sua experiência infantil de sentir a barra pesada, mas sem saber o que é barra e o que é pesada, à noite, numa rua vazia? Esta imagem da bolha de tempo foi sugerida, há alguns anos, pela psicanalista paulista, Ângela Santa Cruz. Se como diz Losicer “o destino de toda bolha é estourar” toda bolha é uma bomba de tempo (LOSICER, 2009). Segundo Maia (2005, p. 84), “em oposição ao que se passa no processo de recalcamento, que preserva a potência de simbolização, na recusa, há uma despotencialização da capacidade de simbolizar”. Na esteira de Figueiredo, que pensa o processo de recusa como “desautorização da percepção”, a autora explica que o que ocorre aí é “o congelamento do processo perceptivo, a impossibilidade de seu deslizamento de sentidos. Tem-se a percepção, mas seu aspecto transitivo fica prejudicado. Sua dimensão de processo se interrompe: uma possível percepção que se faria presente depois da primeira fica impedida; uma lembrança que poderia por ela ser ativada não ocorre; (...). Resumindo: o que é desautorizado, no processo perceptivo, não é a percepção em si, mas a sua potência de desdobrar-se em outros processos psíquicos, como por exemplo, o enredamento de outras percepções, processos mnêmicos ou de simbolização” Frase dita por um filho de ex-preso político, durante um grupo de pesquisa intervenção realizada pela equipe clínica do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ.
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